Desencaixotando Rita

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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

"eu, olga hepnarová"






é verão em praga
e o ano é 1973.

[você,
olga misantropová, com seu figurino de caminhoneira nouvelle vague, suas calças de veludo cotelê e  a jaqueta de couro craquelada, você, anna karina psicopata, ainda que visionária, você ignora o óbvio

: o avesso do amor não é o ódio]

           é verão em praga
           mas faz ainda muito frio
e o avesso do amor é o coração terminando de bater de encontro ao asfalto, fraturas expostas, intestinos a migrar da cavidade abdominal como uma corda autônoma que sabe exatamente o destino que lhe é devido: o pescoço que espera a quebra
                de parágrafo,
o cadafalso que espera
           a quebra         do pescoço
   com a corda na mão.
[corta para] o caminhão de olga estacionado na calçada;
a fileira corpos estendidos como uma oferenda satânica, mas você não é satânica, olga, você é uma assassina em massa e isso é diferente. satânico é outra coisa. planejar um assassinato simples requer               um engodo fundamental, um paralaxe e você
                     escolheu ignorar que o avesso do amor
                                                              não é o ódio.

é verão em praga
             e faz frio;
o avesso do amor
se faz por meio de grandes colapsos,
colisões no concreto, no asfalto,
um embotamento brutalizado,

e você, olga hepnarová,
espera seraficamente
          a polícia;
a bolsa no colo,
sentada em seu caminhão

você, a autora dessa carta perturbadora
para as gerações que virão:


                        "eu, olga hepnarová,
                     vítima de sua bestialidade,
                    condeno-os todos à morte."


segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

"diário do ano do macaco de fogo"

You transform into a tiger before their eyes.
Your very being commands an awe that makes consulting the oracle unnecessary.
Hexagram Forty-Nine/Line Five: The revolution (I CHING)



                                     se como celan

                            eu tivesse a certeza
de que os poemas estão a caminho
se ao menos eu não tivesse
fundado toda uma mulher
       [uma mulher inteira
       garganta glote ancas
            sexo tornozelos]
      apenas em torno
de uma palavra infeccionada
                      se eu não tivesse 
                     as mãos gretadas
 como uma figura mitológica
                           mal-sucedida 
em suas peripécias amorosas
        eu poderia sim acreditar
            [como se a minha vida
      dependesse disso de fato]
 no efeito de luz
na voragem súbita
no obscurecimento
que se segue
     e se repete
            e se repete
nesse projeto desconjuntado 
                     de revolução
mas é que eu vejo coisas
vejo coisas em ti e neles
constato o que há de cínico -- o símio
que mimetiza o desfecho ígneo
                      e não 
eu não sei mesmo manusear o objeto isqueiro
                          não tenho habilidade
para os grandes gestos incendiários
      estou aguardando   
 p a c i e n t e m e n t e
      a grande água
como alguém que gesta
um filho querido
na cicatriz íntima
de seu próprio útero
mas se aterroriza diante 
da perspectiva brutal
     do nascimento 
       de um grito



"manual de exorcismo - nível intermediário"

me descreveram extensamente seus traços aristocráticos,
sua testa alta, os olhos límpidos azuis, sua tez de valquíria,
e soube que você cresceu em frente ao mar e que
fora uma criança recessiva numa família de possíveis alcoólatras,
mas que não hesitou em seguir ~abstêmia, é verdade ~ o mesmo caminho.
fui informada das suas tardes no clube, suas aulas de equitação e você sabe que
eu vivi pouco mais de um ano na sua casa e admito, portanto, que prestei homenagem
à deidade teutônica que você deixou em seu lugar quando foi embora,
levando às pressas na mala os livros de liberalismo econômico e as novelas de
Henry James, deixando um homem (é correto dizer o "nosso homem?") decomposto
em vários mosaicos, os quais eu, com minha lua em peixes, solucionei rápido demais.
há o preço a se pagar por isso. 
há os filhotes de camundongo escondidos no assoalho,
mas há mesmo o mistério que é você, desaparecida [a mulher anterior]
sem vestígios,
sua beleza apolínea -- uma moça de carreira, concursada,
dourada e, esquecido sobre a mesa, o lubrificante vaginal,
           seu sobrenome radiofônico na correspondência que
                                                            continuou chegando por meses,

           você, meu demônio incidental particular,
                               seu sangue azul Chagal
                                  manchando o sofá.